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sobre a meza a tigella do seu caldo. Os solugos resistiram ä violencia
da deglutigäo. A attribulada moga pediu de joelhos que a deixassem
ir para a sua cama, que estava a morrer de frio.
Quando isto me contaram, pedi ao lavrador que deixasse ser
visitada sua filha pelo cirurgiäo de minha casa. O alarve riu-se, e disse:
dO remedio era desfazer a venda, e deixar morrer os bois em casa.«
E vocemecd antes quer que Ihe morra a filha? repliquei. O lavrador
espirrou-me uma cascalhada alvar no rosto, e exclamou: »O snr. näo
me parece homem de estudos! Jä se viu n’este mundo morrer alguem
por amor de uns bois?«
Thereza tinha ataques febris todos os dias, e seccaram-se-lhe
a este fogo as lagrimas. O lavrador consentiu que o cirugiäo lhe visse
a filha, e jä näo se riu quando o facultativo lhe disse: »Eu creio
poder asseverar-lhe que sua filha morre.« De que?! perguntou o pai.
»De saudades dos seus bois.« E entäo näo ha cura nenhuma? retor-
quiu eile. »Ha. Deixe estar os bois: espere que sua filha tenha marido,
ou affeigäo que a distraia dos bois que ella creou, e, depois, venda-os.«
O lavrador näo tinha outra filha. Consultou a mulher, a quäl,
abalada pelo susto do marido, sentiu em si um estremecimento de
coragäo maternal. Foram ä cama da doente, e disseram-lbe que jä
estava desfeito o contracto. Foi orvalho do ceu, que choveu sobre a
flor queimada. Purpurearam-se-lhe as faces; accelerou-se-lhe o pulso
com a febre suavissima da alegria. Quiz logo erguer-se, amparada äs
mäos dos pais, que beijava, soffregamente. Näo tinha forgas, mas o
jubilo deu-lh’as milagrosas. Desceu ä corte, e rompeu em vehementes
e amoraveis apostrophes aos bois, que a farejavam, e lhe afumegavam
as faces e mäos. Presenciei este lance, e näo pude suster as lagrimas.
Revigaram as gragas peregrinas de Thereza em poucos dias.
Este caso deu-se ha quatro annos. Os bois tem hoje quatorze.
O lavrador espera que a filha se incline a outros affectos mais racio-
naes para vender aos inglezes a carne rija d’aquelles dois ditosos
quadrupedes. Suspeito, poräm, que eiles häo de morrer velhos, enco-
stando a rugosa cabega no regago de Thereza. Quando isto acontecer,
pöde ser que o coragäo da minha formosa visinha se dedique a algum
outro animal menos domestico, e menos agradecido.
A tua visinha — disse eu — emquanto a mim, se näo e fabulosa
como a Pasiphae, tem instinctos e coragäo de vacca! Perdoa-me, se näo
choro enternecido com a tua historia. E certo que as lendas antigas
contam casos, que tem sua referencia, mais ou menos mythologica,
symbolica, e . . .
Vas-me contar a importancia dos bois no Egypto, na Phe-
nicia, e no Indostäo? . . . Pego licenga aos teus leitores para te man-
dar bugiar ... Näo entendeste o coragäo da pobre Thereza! .... lu
so entendes o amor ao boi, desfeito em bifes ou almondegas!
Camillo Castello Branco
(Vinte horas de liteira).