100
frio, como as sedas da juba de um leäo irritado. Nos olhos amorte-
cidos faiscou instantaneo, mas terrivel, o sombrio claräo de uma co-
lera, em que todas as ancias insoffridas da vinganga se accumulavam.
Em um impeto, a presetiga reassumiu as proporgöes magestosas
e erectas, como se lhe corresse nas veias o sangue do mancebo que
perdera. Levando por acto instinctivo a mäo ao lado, para arrancar
a espada, meneou tristemente a cabega. A sua boa espada, cingira-a
eile proprio ao filho n’este dia que se convertera para a sua casa em
dia de eterno lucto!
Sem querer ouvir nada, desceu os degraus do amphitheatro, se-
guro e resoluto como se as neves de setenta annos lhe näo branque-
assem a cabega.
— Sua magestade ordena ao marquez de Marialva, que aguarde
as suas Ordens — disse um camarista detendo-o pelo brago.
O velho fidalgo estremeceu como se acordasse sobresaltado, e
cravou no interlocutor os olhos desvairados, em que reluzia o folgor
concentrado de um pensamento immutavel.
Desviando depois a mäo que o suspendia, baixou mais dois degraus.
— Sua magestade entende que este dia ja foi bastante desgra-
gado e näo quer perder n’elle dois vassallos . . . O marquez desobe-
dece äs Ordens d’el-rei?! . . .
— El-rei manda nos vivos e eu vou morrer! — atalhou o
anciäo em voz aspera, mas sumida. - Aquelle e o corpo de meu
filho! — e apontava para o cadaver. — Estä ali! Sua magestade pöde
tudo, menos desarmar o brago do pae, menos deshonrar os cabellos
brancos do creado que o serve ha tantos annos. Deixe-me passar, e
diga isto.
D. Josä vira o marquez levantar-se e percebera a sua resolugäo.
Amava no estribeiro mör as virtudes e a lealdade nunca desmentidas.
Sabia que da sua bocca näo ouvira senäo a verdade, e a idba de o
perder assim era-lhe insupportavel. Apenas lhe constou que eile näo
accedia ä sua vontade, fez-se branco, cerrou os dentes convulsos, e,
debrugado para föra da tribuna, aguardou em ancioso silencio o des-
fecho da catastrophe.
A esse tempo jä o marquez pisava a praga, firme e intrepido
como os antigos romanos diante da morte. Dentro do peito o seu
coragäo chorava, mas os olhos aridos queimavam as lagrimas quando
subiam a rebentar por elles. Primeiro do que tudo queria a vinganga.
Por impulso instantaneo, todo o ajuntamento se poz de pd Os
semblantes consternados e os olhos arrazados de agua, exprimiam
aquella dolorosa contensäo do espirito, em que um sentido parece
concentrar todas.
Deixae-o ir ao velho fidalgo! A magua que o traspassa, näo tem
egual. O fogo que lhe presta vida e forgas, h a desesperagäo. Deixae-o
ir, e de joelhos! Saudae a magestade do infortunio!
O pae angustiado ajoelhou junto do corpo do filho e pousou-
lhe um osculo na fronte. Desabrochou-lhe depois o talim e cingiu-o,