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levantou-lhe do chäo a espada, e correu-lhe a vista pelo fio e pela
ponta de dois gumes. Passou depois a capa no brago e cobriu-se.
Decorridos instantes estava no meio da praga e devorava o toiro com
a vista chammejante, provocando-o para o combate.
Cortado de commogöes täo crueis, näo lhe tremia o brago, e
os pes arreigavam-se na arena como se um poder occulto e superior
lh’os tivesse ligado repentinamente ä terra.
Fez se no circo um silencio gelido, tremendo e täo profundo,
que poderiam ouvir se ate as pulsagöes do coragäo do marquez, se
n’aquella alma de bronze o coragäo valesse mais do que a vontade.
O toiro arremette contra eile . . . L ina e muitas vezes o investe
cego e irado, mas a destreza do marquez esquiva sempre a pancada.
Os ilhaes da fera arfam de fadiga, a espuma franja-lhe a bocca,
as pernas vergam e resvalam, e os olhos amortecem de cansago. O
anciäo zomba da sua furia. Calculando as distancias, frusta-lhe todos
os golpes sein recuar um passo.
O combate demora-se.
A vida dos espectadores resume-se nos olhos.
Nenhum ousa desviar a vista de cima da praga.
A immensidade da catastrophe immobilisa todas.
De subito solta el-rei um grito e recolhe-se para dentro da tri-
buna. O velho aparava a peito descoberto a marrada do toiro, e
quasi todos ajoelharam para resarem por alma do utimo marquez de
Marialva.
A affiictiva pausa apenas durou momeutos. Por entre as nevoas
viu-se o homem crescer para a tera, a espada fusilar nos ares, e logo
apös sumir-se atb aos copos entre a nuca do animal. Um bramido,
que atroou o circo, e o baque do corpo agigantado na arena encer-
ram o extremo acto do funesto drama.
Clamores Unisonos saudaram a victoria. O marquez que tinha
dobrado o joelho com a forga do golpe, levantava se mais branco
do que um cadaver. Sem fazer caso dos que o rodeavam, tornou a
abragar-se com o corpo do filho, banhando-o de lagrimas e cobrindo-o
de beijos.
O toiro ergueu-se, e, cambaleando com a sesäo da morte, veiu
apjljiar o sitio onde queria expirar. Ajuntou ali os membros, e deixou-
os cair sem vida ao lado do cavallo do conde dos Arcos.
N’esse momento os espectadores, olhando para a tribuna real,
estremeceram. El-rei, de pe e muito pallido, tinha junto de si o mar
quez de Pombal, coberto de pö e com signaes de ter viajado de pressa.
Sebastiäo Josd de Carvalho voltava de proposito as costas ä
praga, fallando com o monarcha. Punia assim a barbaridade do circo.
- Temos guerra com a Hespanha, senhor. E inevitavel. Yossa
magestade näo pöde consentir que os toiros lhe matem o tempo e os
vassallos! Se continuassemas n’este caminho . . . cedo iria Portugal ä vela.
Foi a ultima corrida, marquez. A morte do conde dos Arcos
acabou os toiros reaes em quanto eu reinar.