98. E com forgar o rosto, que se enfia,
A parecer seguro, ledo, inteiro,
Para o pelouro ardente, que assobia,
E leva a perna ou brago ao companheiro.
D’esta arte, o peito um callo honroso cria,
Desprezador das honras e dinheiro,
Das honras, e dinheiro, que a Ventura
Forjou, e näo virtude, justa e dura.
99. D’esta arte se esclarece o entendimento,
Que experiencias fazem repousado;
E fica vendo, como de alto assento,
O baixo trato humano embaragado:
Este onde tiver forga o regimento
Direito, e näo de affeitos occupado.
Subirä (como deve) a illustre mando
Contra vontade sua, e näo rogando.
Luis de Cam'oes
(Os Lusiadas. C. VI, est. 92—99).
61. Soneto.
Alma minha gentil, que te partiste
Täo cedo d’esta vida descontente,
Repousa lä no ceo eternamente,
E viva eu cä na terra sempre triste.
Se lä no assento ethereo, onde subiste,
Memoria desta vida se consente,
Näo te esquegas de aquelle amor ardente,
Que ja nos olhos rneus täo puro viste,
K se vires que pöde merecer-te
Algua cosa a dor que me ficou
Da mägoa, sein remedio, de perder-te;
Roga a deus que teus annos encurtou,
Que täo cedo de cä me leve a ver-te,
Quäo cedo de meus olhos te levou.
Luis de Camoes.