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Estäo ja reunidos todos convivas, que säo cavalleiros respeitaveis
e de posigäo, tanto da localidade como do Porto e algumas senhoras;
na casa as criadas, com os fatos domingueiros, äpressam-se a dar os
Ultimos retoques ä mesa, a pör as ultimas facas. Ve-se bem que se
vae desempenhar uma grande »tragedia culinaria«. E uma hora da
tarde, ahi temos jä na comprida mesa as papas do serrabulho feitas
de milho e sangue do porco, e que fazem as vezes da sopa; 6 natural
que näo fossem da predileccäo dos nossos compatriotas do sul, mas
o nosso estomago cosmopolita, acha-as agradaveis; depois comeya o
desfilar successivo das differentes eguarias n’uma abundancia täo grande,
que esses grandes comilöes que se chamaram Lucullus, Trimalcion, o
imperador Vitellius, os personagens de Rabelais, Gargantua e Pantagruel
sentir-se-iam bem satisfeitos ä mesa e se pensassem em »limpar« as
enormes travessas »näo dariam conta do recado«.
Ahi chegam as miudezas do porco cozidas de sociedade com
gallinhas, depois o verdadeiro »serrabulho« que 6 o sangue cozido e
para quem gostar, adocado com mel (!) este exquisito pratö recordou-
nos »Madame Chrysantheme«, a graciosa japoneza que Pierre Loti nos
descreve comendo pimentos com assucär! Agora cabe a vez aos classicos
rojöes, depois veem os filetes pannados, as costelletas, os pastellöes
de batata, o lombo assado, as salladas, ervas, azeitonas, etc., tudo isto
regado com os preciosos vinhos do Douro e com o »verde branco«,
uma especialidade da regiäo. E tempo de nos convencermos, por uma
vez, de que näo necessitamos nas nossas mesas dos vinhos estrangeiros,
pois que os täo afamados Medoc, Saint Emilion, Sauterne, Chablis,
Bourgogne e mesmo os hespanhoes Valdepehas e Rioja, em cousa alguma
säo superiores ao nosso precioso Collares, aos Claretes do Douro, aos
verdes brancos e tintos d’Amarante e a todas essas grandes variedades
de vinhos da regiäo duriense.
Ao prineipio, segundo o costume de todos os jantares, os con
vivas säo todos ceremonias e pouco falam, mas na altura dos rojöes,
caros leitores, a conversagäo principiou e a valer!
Os ditos adequados ao jantar cruzam-se por todos os lados, a
cavaqueira trava-se animada, discutindo-se tudo: a restricgäo do plantio
de vinha, a foryanaval do Japäo, a melhor forma de preparar os presuntos
e atö. . .se discute a politica da actualidade.
Chegam agora as fructas, os doces caseiros, os »Champagnes«
nacionaes, o cafe e os licores. Estamos certos de que Leibnitz, o velho
philosopho allemäo, quando offereceu ä humanidade a celebre dirisa
do seu optimismo »tudo pelo melhor no melhor dos mundos possiveis«
tinha certamente o estomago bem cheio; foi debaixo da influencia
d esse mesmo optimismo, ([ue os convivas se levantaram da mesa, onde
estiveram mais de duas horas.
M. R. d. Assis e Carvalho
(Diario de Noticias, 30 de Janeiro 1908).